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PONTO PERPENDICULAR

  • Foto do escritor: Leonardo Siqueira
    Leonardo Siqueira
  • 27 de mai.
  • 8 min de leitura

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Isso é um prólogo. Felipe conta que, certa noite, há cerca de seis meses, estava saindo tarde da sua nova faculdade, como fez rotineiramente nos últimos dois anos. Ao olhar para o lado, na escadaria, viu dois meninos. Jovens, lindos, com seus 19 ou 20 anos, repletos de colágeno, hormônios à flor da pele e o córtex pré-frontal ainda em desenvolvimento. Eles estavam se beijando. Se beijando muito. Nada que sugerisse conotação sexual, mas com uma vontade e paixão que preenchiam o ambiente.


“Achei curioso”, ele admitiu. Talvez excitante? “Na verdade, acho que foi porque, na minha opinião, eles eram os meninos – ou será que homens? – mais bonitos e populares da faculdade. E lá estavam, se pegando.”


Felipe parou na escadaria como quem chega a um cruzamento de estradas. Cada caminho parecia levar a um lugar diferente: um voltava para quem ele foi, outro o forçava a encarar quem ele é hoje, e o terceiro apontava para um futuro incerto. Aquele ponto perpendicular da sua vida, onde passado, presente e futuro se encontram, não o permitia avançar. Era como se estivesse congelado, incapaz de escolher uma direção. Ele sentiu o peso de todas as versões de si mesmo que já foi, todas coexistindo e debatendo dentro dele. Ele não sabia o que aquela cena despertava: inveja, desejo, arrependimento ou apenas uma saudade difusa. Era tudo isso e nada disso ao mesmo tempo, uma confusão que o paralisava.


O pior é que ele já esteve no lugar daqueles dois. “Eu já fui o menino popular. Talvez o mais popular da escola onde estudei, e depois na outra faculdade que fiz quando tinha exatamente 19, 20 anos”. Ele e o namorado da época eram, sem dúvida, os mais bonitos e desejados. “E o que importa isso agora?”, ele se perguntou. Importava porque, além de os 19, 20 anos não voltarem, a segurança que ele tinha naquela época também parecia ter evaporado. Não era apenas sobre aparência ou status; era sobre o que aqueles anos simbolizavam: uma confiança inabalável, uma sensação de invencibilidade que parecia impossível de recuperar.


Hoje, ele jamais se consideraria o mais popular ou bonito da faculdade, mesmo que, hipoteticamente, fosse. “Não consigo apontar o dia em que acordei e não me senti mais bonito, ou quando deixei de ser popular… Foi quando saí daquela faculdade? Talvez”.

Felipe passou a se preocupar com família, com o pet, com a carreira e o futuro. As prioridades mudaram. “Não era mais apenas passar nas matérias e me perder no grude com meu namorado”. A maturidade trouxe a compreensão de que a insegurança atual era resultado de um conjunto de experiências. Talvez o cara que não quis ficar com ele porque ele não tinha tanquinho. Talvez o excesso de conteúdo online, que enaltece bonitos e bem-sucedidos com corpos esculturais. “Ok, talvez essa seja minha maior insegurança”, ele admite.


Mas ele também sabe onde encontra força: no humor, no carisma, na entrega genuína que oferece em suas relações. “Quando me entrego, me entrego de verdade, seja para família, amigos ou namorado”.


Ainda assim, a cena dos dois garotos beijando foi um choque de realidade. “Cresci, estou perto dos trinta e nem percebi”, refletiu. Quando foi que perdeu toda aquela segurança? Apesar de saber que foi um processo, ele não consegue se lembrar de ter vivido essa transição. “Será que o Felipe de 10 anos teria orgulho do Felipe de vinte e tantos?”, ele se pergunta. “Acho que sim, mas nessas horas a sabotagem fala mais alto”.


Seus sonhos de criança e adolescência estavam sendo realizados? Ele ainda os tinha? Ainda lembrava deles? Importava-se com eles? “Não quero apenas seguir o fluxo que a vida adulta e o capitalismo nos impõem”. Onde estava o Felipe que sonhava, que escrevia textos como forma de terapia? Onde estava aquele que desenhava coleções e as catalogava por puro prazer? Que pesquisava moda apenas para criar? “Onde foi parar aquele eu que realizava sonhos e, ao realizá-los, nem parecia que eram sonhos”, ele se questiona.


Talvez, ao ver os garotos se beijando, ele não estivesse apenas observando a cena. Talvez estivesse se perguntando: “Eu ainda estou aqui?”. A cena ainda lembrou Felipe de 2014, quando tinha 15 ou 16 anos. Era sua primeira grande aventura: uma viagem para São Paulo com amigos. Era dezembro, e a cidade estava tomada pelo espírito natalino. Ele descreveu como a Avenida Paulista brilhava com suas luzes de Natal, e como parecia impossível não se sentir parte de algo maior ali.


1989 da Taylor Swift tinha acabado de ser lançado e “Welcome to New York” tocava no último volume em seus fones de ouvido – ainda com fio na época – enquanto ele caminhava pela cidade.


Foi nessa viagem que algo aconteceu. No último andar do Shopping Pátio Paulista, enquanto sacava dinheiro em um caixa eletrônico, ele viu algo que o marcou profundamente. No café ao lado, dois homens, impecáveis em seus ternos e gravatas, estavam em um encontro. Conversavam com leveza, riam e, então, se beijaram.


Felipe ficou paralisado, mas não por desconforto. Aquilo era apenas a mediocridade de um cotidiano, mas em 2014, aquilo soou mais como se estivesse olhando para o futuro – para uma versão de si mesmo que ele desejava alcançar. Crescendo no interior, era difícil imaginar que poderia andar de mãos dadas com alguém ou trocar carícias em público sem medo. Mas, naquele momento, vendo aqueles dois homens, ele se perguntou: será que um dia seria assim? Bem-sucedido (como aqueles dois aparentavam), bonito, seguro de mim? A cena diante dele despertou uma visão do que poderia ser, mas também um receio do que parecia inatingível.


Foi ali que ele entendeu, mesmo que ainda sem palavras, o poder da representatividade. Aqueles dois homens não eram apenas um casal; eram uma possibilidade. Existir ali, com afeto e dignidade, era uma forma silenciosa — e poderosa — de dizer que era possível, sim, viver sem se esconder. Na ausência de espelhos onde pudesse se enxergar ao crescer, aquela imagem se tornou um farol. Representatividade importa porque oferece pertencimento antes mesmo da coragem, porque planta esperança onde antes só havia silêncio. E naquele instante, Felipe não viu apenas dois desconhecidos. Ele viu uma versão futura de si mesmo que, pela primeira vez, parecia real.


Entre esses questionamentos sobre o futuro e o peso das comparações, Felipe começou a refletir sobre sua própria jornada. A visão daqueles dois homens não só o fez ponderar sobre o que poderia ser, mas também o forçou a confrontar as barreiras internas que o impediam de avançar. Naquele instante, ele não só olhava para os outros, mas também para dentro de si mesmo, tentando entender o que ainda o prendia a uma versão antiga de sua vida. Isso o levou a uma série de autoquestionamentos, incluindo o reconhecimento de uma tendência autodestrutiva: a de comparar constantemente seu presente com o passado e o futuro que ainda parecia distante.


Felipe admite que sempre teve uma habilidade quase destrutiva de se comparar. “Por que continuo me comparando ao passado? Por que fico preso entre o futuro que imaginei e a nostalgia de quem fui?”, ele se perguntou. A dúvida o corroía. E, apesar das conquistas que já havia alcançado – uma empresa própria, uma estabilidade financeira, um relacionamento sólido, três gatos e uma família que o amava – algo dentro dele ainda não estava completo. "Se voltar no tempo e beijar o cara mais bonito da faculdade não é uma prioridade… por que doeu tanto vê-los se beijando?" Ele não conseguia deixar de sentir um vazio. A cena dos dois homens, aparentemente simples, tocou algo profundo em sua alma.


Talvez porque aquele beijo não fosse apenas um beijo.


Era mais do que isso.


Era um símbolo de uma vida que ele já tinha vivido, de um desejo de liberdade e autoconfiança que ele ainda já havia conquistado, mas não por completo. Era um ponto de exclamação no meio de uma frase que ele ainda não terminou de escrever. Era um lembrete de que o tempo passa, e de que ele, assim como todos nós, ainda tenta encontrar significado em cada curva e encruzilhada da vida.


“Talvez eu ainda esteja aqui, mas nem sempre consigo me reconhecer.”


Presenciar aqueles caras de 19, 20 anos na escadaria não era sobre inveja ou arrependimento. Era sobre a vida em movimento, sobre a percepção de que crescemos e mudamos de forma quase imperceptível. Ver aqueles homens se beijando no shopping, em 2014, não era o futuro, mas naquele momento, para ele, parecia ser. E mais do que isso, talvez fosse um reflexo do que ele ainda não havia se tornado, uma lembrança do que ele desejava ser.


Felipe não precisa mais ser o garoto popular da faculdade. Ele é mais do que isso. E talvez, apenas talvez, ele esteja exatamente onde deveria estar. Às vezes, nos pegamos observando o que os outros têm ou fazem, desejando ter vivido outras vidas, mas, no fim, nos damos conta de que a verdadeira jornada é a que estamos trilhando agora. A busca por quem somos nunca é uma linha reta, e talvez o verdadeiro aprendizado esteja em aceitar os caminhos que tomamos, as pessoas que nos tornamos e as possibilidades que ainda estão por vir, aquelas que encontramos nas perpendicularidades da vida. E, talvez, se olharmos mais de perto, o que parece ser a história de Felipe, seja, na verdade, a nossa própria história, ainda em construção.


Talvez, mas só talvez, a história de Felipe não seja só dele, ou inteiramente dele, mas também a minha. E é aí que volto ainda mais no tempo. Antes dos 19, antes dos 15, antes mesmo de sonhar com São Paulo ou de ouvir Taylor Swift nos fones de ouvido com fio. Volto pra um tempo onde tudo parecia rascunho. A infância. Quando os rabiscos ainda eram livres, sem régua, sem pauta, sem a pressão de virar algo concreto. Mas, em algum momento, tudo virou do avesso. Os desenhos espontâneos deram lugar a traços retos. Linhas que não podiam sair da curva. Esperavam que eu crescesse, mas só me endureceram.


Não vejo vídeos da minha infância. Não por vergonha. Talvez por proteção. É difícil ver aquele menino pequeno sem sentir um nó no peito. Naquela época, eu não me sentia frágil. Eu era leve, criativo, intenso, cheio de perguntas. Mas hoje, adulto, reconheço a fragilidade que eu carregava — a que eu não sabia nomear. Hoje acolho aquela criança com o cuidado que ela não recebeu. Com o amor que ela não entendia que merecia.


Não sei se acredito em inferno. Acho que não. Mas, se existir algo que se aproxime, talvez seja ser uma criança diferente em um mundo que exige que você seja igual. Ser uma criança de seis, sete anos, com dedos adultos apontados, olhos inquisidores, vozes exigindo respostas que você ainda nem sabe formular. "Você é gay?" perguntavam com uma mistura de acusação e escárnio, como se aquilo pudesse ser respondido assim, como se sexualidade nascesse pronta e embaladinha na infância. Como se eu tivesse obrigação de saber, de explicar, de carregar.


Talvez não exista inferno. Mas viver sob o peso de uma diferença que você ainda nem entende, ouvindo que é errado, estranho, afeminado, que não pode brincar disso ou daquilo, talvez isso se aproxime bastante de um. É um exílio silencioso. Uma expulsão do simples ato de existir sem medo.


E mesmo assim, eu sorria. Inventava mundos, falava sozinho, criava personagens. Era meu jeito de sobreviver. Era o jeito que a criança que eu fui encontrou pra continuar existindo. Hoje entendo: ela foi corajosa. Tão corajosa quanto confusa. Tão resistente quanto solitária.

E me pergunto: quem fui eu, afinal? Quem sou hoje? Em que momento virei esse adulto cheio de camadas, cicatrizes e memórias que me visitam sem pedir licença? Quando foi que deixei de ser aquela criança que criava histórias e comecei a ser o homem que escreve para não se perder de si?


Às vezes, me vejo ali, entre os rabiscos e os traços retos. Entre o Felipe que existia antes que o mundo dissesse quem ele devia ser — e o que ele é agora, tentando lembrar do que sonhava quando tudo ainda era permitido. E talvez essa seja a resposta. Talvez a infância não seja apenas sobre quem fomos, mas sobre o quanto ainda precisamos voltar pra nos resgatar.


Porque a verdade é que nem sempre sei quem me tornei. Mas hoje, mais do que nunca, sei quem eu fui. E só assim posso, talvez, um dia, descobrir quem eu ainda posso ser.

 
 
 
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